Que problemas você resolveria no seu trabalho nesse momento, se não houvesse a opção de trabalhar hora extra? Como você priorizaria seu trabalho, suas ferramentas, a Stack do projeto, o Backlog? O acordo com o cliente? A reunião de metas para 2024?
Sexta feira, você está fechando o seu dia de trabalho, quase abrindo a primeira cerveja. A empresa te chama pra dizer que precisa daquela entrega que esta atrasada, e que por causa disso o time precisa fazer um esforço extra, e trabalhar no final de semana pra adiantar as funcionalidades pras próximas semanas.
Próximo do fim do projeto, correria desgraçada pra lançar o MVP. Só agora estamos fazendo a funcionalidade que o time de produto acredita ser matadora pra um produto de sucesso, mas que ainda precisa ser analisada melhor e dividida em entregas menores. Não tem tempo, vamos ter que trabalhar mais até depois do horário e nos finais de semana pra fechar a entrega.
Produto quase pronto, projeto chegando no final. Falta apenas garantir que a homologação com os serviços do backend continuam funcionando e que a migração de dados vai dar certo conforme o planejado. Mas as APIs mudaram desde que definimos o contrato em fase de projeto, e a migração de dados vai ficar comprometida. Precisamos de um esforço extra, não dá pra perder a janela de homologação e deploy. A área de negócio precisa validar a entrega. Tem que dar, tem que caber no prazo, temos que entregar. Mais alguns finais de semana trabalhando não vão fazer mal.
Estresse, problemas de saúde, problemas pessoais, brigas, emergência médica, pedidos de demissão - todos nós temos histórias do impacto de uma cultura que vibra com histórias de heroismo no trabalho, em que o time trabalhou dia e noite pra alcançar um prazo, sob todas as consequências possíveis para fazer um a entrega. É bonito apresentar as marcas de guerra no mundo de TI: quantos finais de semana em claro, quantos deploys que deram errado na sexta feira, quantos casamentos acabaram por causa de um projeto, quem foi parar no hospital, ou no alcoólicos anônimos.
Sabe aquele trabalho aceito apenas para cumprir meta de vendas? Aquele mesmo, que o time todo sabia que era impossível de entregar, e mesmo assim se comprometeu com medo de perder o emprego? Pois bem, precisamos ampliar a discussão sobre o seu impacto, a solução que estamos trazendo para as empresas, e como podemos atacar o problema de forma diferente.
Hora extra é a consequência da nossa incompetência em resolver os problemas corretos. É o sintoma que falhamos, não uma medalha de honra pra ser vestida na próxima entrevista de emprego.
E até mesmo escrever sobre isso me coloca numa posição esquisita - pois toda a indústria pensa e age de forma diferente.
Mas àqueles que seguirem no texto, espero tornar meu caso mais claro.
Tenho pra mim que hora extra não é solução para nenhum produto ou projeto, mas o sintoma de que algo está falhando na organização. O problema é que a assimetria só vai ser enxergada no futuro. Ainda que existam momentos em que trabalhar mais intensamente seja compreensível, a cultura crunch, tão presente na nossa indústria, é muito mais nociva que se possa imaginar.
Se a resposta da sua empresa para qualquer desafio é “então vamos dar um gás esse mês pra entregar”, existe um problema real que ninguém quer falar a respeito. Priorização de entregas? Falta de dinheiro pra ampliar equipe? Prazos irreais? Compromissos assumidos por outras pessoas que impactam seu trabalho?
Libby Marks descreve extensivamente o impacto dessa cultura na industria de jogos, conhecida por ter ambientes extremamente tóxicos e impactantes. É comum a hospitalização de funcionários por estresse nos últimos meses antes do lançamento de um novo jogo. Fracassos dantescos como Anthem da Bioware e Cyberpunk 2077 são exemplos de como empresas podem sofrer as consequências de culturas que acreditam que tudo da pra ser resolvido com mais horas na cadeiras.
Crunch em última instância resulta em um ciclo de produção de jogos pior e mais demorado. Você terá uma melhor experiência de jogos se a indústria tratar melhor os funcionários. Mike Bithell
Para quem gosta da indústria de games, Jason Schreier apresenta em detalhes os casos mais emblemáticos nos últimos anos em seu livro. E no famoso post EA: The Human Story, traz uma perspectiva do impacto emocional nas famílias de quem trabalha na indústria,
O que motiva?
Momentos de trabalho extra são inevitáveis, e o trabalho criativo em muitos aspectos pode nos levar a trabalhar uma quantidade reprovável de horas. Transformar isso numa expectativa do trabalho é que é desumano.
Em caso de emergências ou necessidades operacionais críticas, Horas extras podem ser obrigatórias, e a CLT Prevê o pagamento e a contabilização dessas horas, felizmente para o Brasil. Nesses casos, os funcionários podem ser convocados a trabalhar horas extras e receber por isso.
No artigo "Why do employees actively work overtime? The motivation of employees’ active overtime in China" (Publicado em Frontiers), se explora as motivações para o trabalho em horas extras e seu impacto no ambiente de trabalho chinês. Ele destaca que fatores motivacionais e de higiene podem promover a motivação dos funcionários para trabalhar horas extras. Entre esses fatores estão a cultura de horas extras, acordos institucionais, um bom ambiente físico de escritório, crescimento na carreira, recompensas financeiras.
Toda recompensa financeira por trabalho extra afeta o trabalho realizado durante as horas normais de trabalho. Afinal, por quê realizar um bom trabalho durante o expediente, já que é fazer uma grana extra fingindo que o trabalho é mais complexo do que realmente deveria ser? Esse comportamento é reflexo de um modelo de incentivo que privilegia tempo no problema, e não resolução do problema.
A cultura de crunch é o padrão em diversas indústrias, e os casos de trabalho extra são responsáveis por MUITOS relatos de exploração no trabalho. Existem empresas em que essa visão é compartilhada inclusive na contratação, e a expectativa de você estar 80, 100 ou até mais horas por semana trabalhando! Mas na TI, no mundo corporativo, isso ainda é visto como um esforço louvável pra alcançar o sucesso. A eterna Roda de Ramster que nos venderam muito bem. Estamos presos nesse modelo e sem opções diferentes de trabalho:
Um profissional de RH de um banco de investimentos, durante uma conversa comigo: “a gente fala pros candidatos que entrevistamos: ‘você tem familia? Porque aqui você não vai ver eles. Tem que entender o modelo pra aceitar’
E o corpo de pesquisa quanto às horas extras é extremamente claro: Trabalhar a mais simplesmente não funciona. E mais do que isso: muito provavelmente quem diz trabalhar muito, está mentindo.
E se não bastasse: A Qualidade SEMPRE é pior!
Ou seja, estamos sendo enganados, com a perspectiva de que todo mundo está mentindo junto, para manter a imagem de herói, quando na verdade está todo mundo organizado pra fazer vista grossa na expectativa das empresas.
Hora extra é sempre sintoma de problemas, nunca uma solução.
Uma empresa do mercado financeiro, famosa por sua cultura de trabalho excessivo, gasta o dobro por ano do valor da Folha em pagamento de horas extras e processos trabalhistas. Esta mesma empresa, no dia em que o bonus é pago aos funcionários, uma fila se forma no RH para pedir demissão. Fica quem precisa. Qual o mérito de um ambiente desses no mercado? Sob qual régua de sucesso estamos colocando nossas organizações?
O problema não está em se esforçar e eventualmente colocar horas a mais em algo que você acredita e quer ver acontecer. Até entendo um esforço pontual acordado com todo mundo para um momento crítico. Mas quando a organização normaliza essa prática, os resultados de longo prazo são evidentemente catastróficos, e sempre pra quem está realizando o trabalho.
Não existe profissional que faça um bom trabalho numa jornada de 80+ horas semanais. É impossível ter resultados de médio/longo prazo produtivos nessas condições - e tenho certeza que você conhece histórias de equipes inteiras, que por meses a fio seguiram trabalhando finais de semana para alcançar algum objetivo questionável de um backlog que talvez nem precisasse existir.
Um exercício mental para sua empresa:
Se não houvesse a opção de trabalhar além da capacidade real do time, o que você resolveria do seu processo, código, estrutura ou Equipe? Qual problema real você atacaria?
Como mudaria seu planejamento? Se não é possível compensar o atraso com suor no final de semana, qual problema você sabe que existe, mas parece grande demais para ser resolvido?
O que é possível parar de fazer, que não serve mais ao time? Qual é a conversa difícil que temos que ter? O que sobra pra resolver?
É possível eliminar hora extra na cultura da empresa?
Eu acredito que sim, de maneira geral, é possível melhorar a cultura da organização para evitar que horas extras sejam incentivadas e recompensadas na empresa. Além disso, políticas claras quanto ao trabalho também ajudam a reduzir a promoção de horas extras como prática de trabalho.
Mas remover horas extras na empresa é difícil: porque demanda você querer trabalhar para resolver os problemas reais que causam as horas extras. Quando as horas extras estão fora de questão, o que tem que ser resolvido?
No desenho de organizações, os incentivos que colocamos através de políticas de gestão de pessoas ditam muito do comportamento da equipe, e eles podem ser aliados ou vilões. Na minha experiência, políticas importantes para isso são:
Acordo de trabalho explícito quanto à impossibilidade de horas extras, colocando em evidência que problemas devem ser resolvidos nos momentos adequados ao trabalho
Repreender o comportamento de heroísmo na equipe, que apesar de romântico, desestabiliza o trabalho em equipe de piora a colaboração das pessoas
Tratar Horas Extras de maneira rigorosa com um processo de autorização, uma vez que é impossível abolir completamente a prática
Enviesado pela minha história, posso dizer que sim, é bem possível construir ambientes em que hora extra é a excessão da excessão, e que demanda um esforço grande vencer a crença que suor é muito melhor que inteligência no trabalho. Este esforço é parte integrante na construção de ambientes humanizados de trabalho.
No livro "Empresas Humanizadas: Pessoas, Propósito, Performance", de Raj Sisodia, David B. Wolfe e Jag Sheth, lançado em 2019, destacam a importância de criar ambientes de trabalho humanizados, focados no desenvolvimento humano. O livro é voltado para gestores, líderes e profissionais interessados em aprimorar a cultura organizacional.
Os autores argumentam que as empresas podem alcançar sucesso ao colocar as pessoas no centro de suas estratégias e operações. Eles defendem que, ao contrário da abordagem tradicional que prioriza lucros e resultados a qualquer custo, uma empresa humanizada valoriza o bem-estar e a autorrealização de seus funcionários.
A obra contém diversos casos de sucesso, demonstrando como é possível criar um ambiente de trabalho feliz e produtivo. Os autores enfatizam que a preocupação com o bem-estar dos funcionários não é apenas para a imagem da empresa, mas é também benéfica para todos os stakeholders - incluindo acionistas, gestores, funcionários e clientes.
Um dos principais argumentos do livro é que as empresas bem-sucedidas não devem negligenciar o aspecto emocional, sugerindo que o sucesso verdadeiro combina eficácia operacional com sensibilidade emocional. "Empresas Humanizadas" é um guia para criar uma cultura baseada no desenvolvimento humano, mostrando que é possível ter um ambiente de trabalho onde as pessoas se sentem bem e são produtivas. Este enfoque não só melhora a moral e a satisfação dos funcionários, mas também impulsiona o desempenho geral da empresa
Existe alguma saída?
Ainda estou explorando as possibilidades para evitar que isso ocorra nos times em que atuo, e espero poder compartilhar por aqui muito mais a respeito. Ampliando meu entendimento sobre o momento atual do mundo corporativo, acredito que temos um caminho de entendimento com Byung-Chul Han.
*imagens deste post geradas usando DALL.E
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